top of page

ASSISTIR E ASSISTIR LOBO

por Joana Ferraz

A primeira vez que assisti um ensaio de Lobo, como uma amiga, não só da Carol, mas do universo de questões que atravessavam sua criação, me emocionei profundamente. Eu vi ali algo que me contava da magia que é o teatro, do estupor que é inventar e contar e perfurar a vida com o teatro. Rudemente falando, Lobo sempre foi para mim um trabalho que canta o próprio teatro, a tessitura dessa arte, sobre contar uma história, a potência que há em contar uma história, o limite delicado que separa aquilo que chamamos de realidade daquilo que é o faz-de-conta. Lobo me conta uma história para que eu possa ser atingida pela força que é contar uma história.

   A história é contada de diversas maneiras. A cada bloco de acontecimentos, ela é recontada, destrinchada, rasgada, é preciso alcançar os órgãos dessa história e arrancá-los, ela será contada pelos corpos, pela água que somos nós. Teremos que ir cada vez mais fundo até que ela seja contada com palavras, e ela será, será contada em primeira pessoa, e em terceira pessoa, e por uma criatura marinha, e em nenhuma das vezes chegaremos a conclusão alguma.

   Ali, falso e verdadeiro, real e imaginado, vivo e morto, se encontram num emaranhado em que estes valores e noções se misturam a ponto de perderem-se de seu sentido inicial. O bicho empalhado feito de pelúcia e tinta, morto de mentira, fala, vivo como um fantasma poderia ser considerado vivo; os atores vivos declamam um poema que conta de alguém que morre e morrem de verdade no faz de conta, até que se revela que era apenas uma mentira - afinal, ela nunca seria capaz de matá-los, sonho dentro do sonho, a peça dentro da peça, a cena dentro da cena: a mulher arranca o intestino do homem que cai morto, na ficção de uma filmagem na ficção realidade da peça. A lagosta de verdade, realmente morta, fala e nos conta do que está por vir. O corpo encarna uma escritora real já morta, Mary Shelley, e nos diz: eu não morro. Assim é que a morte nos conta da vida e a vida da morte, que uma pulsa na outra.

   Nessa vertigem de vida e morte, entre ficções e realidades, o ser humano se despe de sua humanidade, verifica no suor que corre de seu corpo exausto uma outra existência, perde as palavras, troca de dentição e de pele, devora o outro, se mistura com o outro, para voltar a ser gente. Não mais tão humano. Gente. O modo de entrelaçar as camadas de sentido da peça é muito preciso para que se opere esse feitiço, para que o sangue mude de cor, como nos diz a voz no início da peça. A peça corre de acontecimento em acontecimento, sangrentamente desconexos, ela mesma como Frankenstein, um corpo aos pedaços feito de muitos corpos... ou talvez um cristal, a harmonia absolutamente confusa de suas faces transparentes.       Não seria possível essa metamorfose de humano ― criatura civilizada normativa capitalista ― em gente se não fosse desse modo. Janaína Leite, em uma conversa pós-apresentação no Sesc Vila Mariana, colocou algo sobre fundar outra linguagem (e ela pode levantar da fileira dos vivos para vir me dizer que não colocou, porque minha memória é mesmo bem imprecisa, se não foi ela quem disse, assim eu quis que fosse), sobre ser este um dos movimentos cruciais acionado pela peça: instaurar uma nova linguagem. Isso me atravessa, isso atravessa os corpos em cena, os estados de percepção, o corpo da peça.

   “Come spiegare con le parole di questo mondo che non c'è nessun altro a poggiare la sua mano sui suoi zoccoli. L'umanità. L'umanità. L'umanità è il nome di una piccola iena con denti assassini, l'umanità. (...) E proverò a parlare attraverso un altro segno.”, nos diz a voz novamente.

   Não seria possível desmontar a linguagem e com ela algo dessa humanidade sem para isso e com isso estraçalhar a coerência da linearidade, a tranquilidade da causa e consequência, sem borrar os limites entre aquilo que chamamos de ficção e aquilo que chamamos de realidade. A narrativa que Lobo nos oferece é um labirinto que vai apertando suas paredes mais e mais, como uma palavra que está na ponta da língua e não conseguimos dizer, mas sabemos, sabemos cada vez mais fundo algo que está sendo dito na peça, infinitas vezes, de diversos modos. A coerência do universo que se ergue na peça se faz na duração, se funda em sua própria existência, tornando evidente que o sentido se faz no tempo e não fora dele. É preciso que seja assim para poder fissurar a parede de mármore da civilização, das certezas, assim como é preciso se atirar no abismo, no escuro, e de repente acender uma vela para aprender as sombras que são este escuro.

   Assisti a peça cerca de 40 vezes (sem contar os ensaios) e ela continua me escapando, inconclusiva, algumas passagens insolúveis. O texto da Peliño (como carinhosamente chamamos nosso animal empalhado de mentira) é um grande mistério para mim, alguns pedaços nunca acharam sentido na minha cabeça. Por exemplo, foi preciso escrever este texto para finalmente sentir/saber a penúltima frase em que ela diz: “se você soubesse como é terrível abrir os olhos e só enxergar transparente.

   Lá pela trigésima vez eu descobri algo da peça, algo que ainda não tinha percebido, algo que eu não anotei e não lembro com exatidão o que foi, mas o mais importante foi o que essa percepção me trouxe, e isso eu escrevi no caderno, no escuro da sala de teatro:

   Uma outra língua.

   A cada vez que se assiste à peça, ela fala mais fundo, mais nítido.
   E acrescento agora: mas nem por isso será decifrada.
   Como eu me disse neste mesmo caderno, em letras grandes, pensando no próprio fazer performático da peça: a peça nunca está ganha.

   Assistir e assistir e assistir à peça, deixar que ela venha de encontro e se faça no seu corpo, se entregar ao balbucio, à desarticulação de algumas certezas do seu olhar e do seu pensar sobre aquilo que você vê, pois a história que se conta ali se conta com as suas entranhas também, se você não as oferecer estará de fato impossibilitado de escutá-la, estará navegando uma primeira camada de sentidos que enganosamente parecem coincidir com paisagens senso-comum, com os assuntos do momento. Não que estes assuntos não estejam lá, estão. O feminismo, o amor, o patriarcado. Como não estariam? Estamos afinal destrinchando esse corpo do senso-comum destas relações, mas é além disso, é no abismo que se abre diante disso que a peça acontece na sua potência.

   A escritura desse texto se esforça para operar na linearidade, uma empreitada um tanto quanto falha. Percebo as palavras que chegam para que eu possa falar da peça, são palavras dela mesma. Assim como a própria peça se estrutura, sigo acumulando pensamentos que se misturam, indefinidos em suas posições no espaço que é esse texto, que é essa ideia.

Carolina Bianchi Y Cara de Cavalo

bottom of page